10.5.25

Resolvi reler os Evangelhos

“Que escolha! Qual a motivação?” Contei para um amigo que o livro que estou lendo no momento é o Evangelho Segundo Mateus (na verdade, meu plano - ao menos inicial - é ler os 4 evangelhos na sequência ) e ele - que sabe que não sou religioso e está acostumado com a imagem que tenho de “racional” - me respondeu com esta pergunta. Qual a motivação?

Estou fazendo, na verdade, uma releitura. Fui criado por pais católicos, estudei até a quinta série em colégio de freiras, tinha aulas de religião, fiz catecismo e primeira comunhão. Então, li um bom pedaço da Bíblia quando criança e o que me ensinaram nessa época sobre isso até que ocupava bastante minha cabeça.

Mas lembro de bem novo ainda, pré-adolescente, começar a ter questões com a Igreja. A primeira: por que era errado meu pai e minha mãe viverem como casal? Ambos eram católicos, aquilo era importante para eles, mas não comungavam na missa porque meu pai se separou no primeiro casamento. Aquilo pra mim não fazia sentido nenhum. E se seguiu a coisa de não poder sexo antes de casar, não poder se masturbar - nada disso fazia mal a ninguém, qual o sentido desse controle?

Mas, justamente por ler a Bíblia, comecei a ter outras questões até mais na raiz da coisa. Tipo: a ideia do Deus não só infinitamente bondoso, mas também onipotente, onipresente, onisciente e infalível não encaixava com a narrativa, por exemplo, do Dilúvio - afinal, Ele fez chover 40 dias e 40 noites pra dar uma espécie de reset na Criação, que estava dando errado. A obra do ser infalível tava dando errado, como assim?! Ainda que tudo ali seja lido como alegoria, não fazia sentido. A mensagem me parecia ser clara: se havia um Deus, ele parecia ter lá suas limitações.

Muito se fala do “Deus vingativo” do Velho Testamento. Muita gente também já discutiu filosoficamente como a coisa do “livre arbítrio” dado a nós por Deus pode ser compatível com a ideia de que Ele teria nos feito exatamente como quis e saberia exatamente o que a gente vai fazer. Enfim, isso tudo aí começou a passar pela minha cabeça acho que com uns 10 anos de idade, até eu começar a dizer mesmo que não me via como Católico.

Mas cristão, sim - porque Jesus era um cara bacana. As ideias básicas de “amar ao próximo como a si mesmo” e “agir com os outros como gostaria que agissem contigo”, que eram pra mim o resumo todo da mensagem dO Cara, me pareciam ser guias éticos com muito sentido; se todo mundo seguisse isso, tudo ia dar bem mais certo.

Com o tempo, comecei a me definir como “cristão filosófico”: não via como me afiliar a qualquer igreja e o importante pra mim era a ética de Cristo, não sua eventual natureza divina. Se existe mesmo um Deus, como ele é, o que acontece depois que a gente morre ( tem reencarnação, existe um Céu, acaba tudo mesmo…?), nada disso era o ponto. Ninguém realmente sabe e só vamos descobrir (ou não…) quando morrermos; até lá, é viver segundo uma ética que permita que todos nós funcionemos da melhor maneira como coletividade, independente de qualquer promessa de recompensa por aqui mesmo ou no pós-vida - e entendendo que ninguém é mais importante que ninguém e fazemos todos parte de algo que é muito maior do que cada um de nós individualmente. O que vem depois, descobrirei depois e isso não precisa impactar nada na minha vida até lá.

Isso ficou bem consolidado pra mim já tem bastante tempo e sigo pensando basicamente desta forma.

Acontece que, tem uns anos, durante a pandemia, comecei a ter contato com algum conteúdo sobre as religiões dos orixás e isso acrescentou algumas camadas. No começo disso, ouvi uma série de episódios de um podcast que gosto muito e infelizmente está parado, o Benzina, em que cada um era dedicado a um orixá. Contavam os itãs (as histórias sobre os orixás, das quais podemos tirar ensinamentos), as implicações filosóficas deles e o que dava pra tirar dali sobre o que cada orixá tem a ensinar de como nós mesmos funcionamos. Falavam deles como seres potentes, mas imperfeitos, e mostravam como o que constituía suas maiores forças também gerava suas maiores fraquezas - e normalmente viravam fraquezas a partir do “ensimesmamento”, da desconexão com os outros. Nenhum deles resolve tudo sozinho, é preciso funcionar em conjunto.

Lembro bem de quando ouvi pela primeira vez um destes episódios, dedicado a Oxóssi, e como aquilo me soava bonito e ia fazendo sentido pra mim - como filosofia mesmo, independente de implicações “religiosas”. Da mesma forma que os ensinamentos de Cristo com que tive contato tão novo. Mas uma coisa estava acrescentando à outra.

(Um bom tempo depois, li um livro sobre Jung e o tarô e percebi o quanto tanto as cartas quanto os orixás e muito mais coisa por aí têm a ver com os arquétipos. Eu lia e pensava: “peraí, essa carta aqui tem muito de Exu, né não?”)

No papo todo do podcast eles apontavam as diferenças na lógica desta cosmovisão em relação à cristã - e eu fui me dando conta de um monte de coisas que têm raiz na Bíblia e em suas interpretações que estão arraigadas por aí (e em mim, claro) sem eu me tocar o quanto que vinham de lá. Desde machismos até a forma como lidamos com nossas próprias limitações e as dos outros, passando pela ética com a natureza e com nossos corpos.

(E, no meu caso, o “de lá” é da infância mesmo. Tema de terapia.)

(Pra deixar claro, até por respeito: não me considero nem digo por aí que sou de nenhuma religião de matriz africana, nem acho que sou um grande entendedor - bem, bem longe disso. Li alguma coisa em livro, ouvi alguma coisa em podcast, consumo na música e me toca, daí passei a me interessar e buscar um pouco mais, mas é isso. Nunca fui a uma casa ou terreiro, embora tenha vontade pra ver como isso se materializa para as pessoas e como me afetaria - como fiz indo buscar alguém pra abrir tarô.)

Mas daí que, a partir disso, fiquei com vontade de revisitar Jesus Cristo na fonte mais primária que temos à disposição - os relatos dos 4 Evangelhos. Depois de tanto tempo, como me bateriam as palavras dEle na fonte? Ainda tem que estamos em um mundo em que cada vez mais Ele e a Bíblia são invocados o tempo todo no debate público, inclusive em campanhas políticas baseadas em atacar diretamente pessoas muito próximas de mim, de minha família e meu círculo mais próximo de amizade. A tirar pelo que está escrito lá das palavras dEle, o que ele acharia disso?

E, como falei no fim do áudio que mandei como resposta ao meu amigo que me perguntou “qual a motivação?”: trata-se, afinal, do livro mais influente da “civilização ocidental” nos últimos 2000 anos. Deve ser bom conhecer.

Daí que os Evangelhos estavam na minha fila de leitura faz tempo e resolvi que agora era a hora. Uma contribuição curiosa para me empurrar um pouquinho mais nessa direção foi uma das minhas últimas leituras: Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking. É um livro de Física que peguei emprestado da minha filha cientista em que, no fim, ele faz reflexões interessantes sobre as implicações das descobertas da ciência sobre a natureza do espaço-tempo nas ideias que temos do papel de Deus na origem de tudo.

(Coincidentemente, comecei a ler os Evangelhos na mesma casa em Itaipava onde ouvi pela primeira vez o tal episódio sobre Oxóssi. Calhou de ser também logo antes da escolha de um novo Papa. E estou escrevendo isso aqui enquanto viajo pela primeira vez para um país de maioria não-cristã - no caso, muçulmana.)

Escolhi para ler uma edição dos Evangelhos que faz parte de uma tradução recente da Bíblia para o português a partir dos textos em grego - que, no caso do Novo Testamento, ao que tudo indica são os originais; mas quase todas as edições em português são a partir de traduções da versão em latim que por muito muito tempo foi a única autorizada pela Igreja Católica. É uma edição comentada pelo tradutor, que traz introduções aos textos e muitas notas para dar contexto e explicar os desafios mais relevantes na tradução.

Cheguei há pouco ao Sermão na Montanha, o discurso fundador e fundamental em que Jesus apresenta as bases de sua ética. É forte, é bonito, é revolucionário, gostei muito de ler e imediatamente voltei ao seu início pra passar por ele uma segunda vez. Mas fato é que, pelo que está lá, vai ser bem difícil um dia a Igreja resolver que a relação da minha mãe com meu pai após a separação dele de seu primeiro casamento estava ok, porque Ele explicitamente diz que divórcio não rola.

Ele ou os que escreveram os relatos aceitos sobre o que Ele falou - claro. Foram pessoas de carne e osso, que viviam em um determinado contexto cultural e histórico e tinham suas limitações. Vamos combinar: quando aqueles textos foram escritos, nem a vírgula ou o espaço entre as palavras existiam na língua deles ainda (mesmo).

Uma diferença marcante das religiões dos orixás em relação ao cristianismo está aí: elas se tratam abertamente como construções sociais e humanas. Ali não aconteceu de Deus descer e entregar um conjunto de leis prontas e imutáveis que estão em um livro sagrado para consulta; todo mundo sabe que existiam crenças de algumas pessoas que se combinaram com crenças de outras ao longo do tempo, de formas diferentes em cada momento e em cada lugar, de acordo com os contextos das pessoas que assim o fizeram. Em cada região é de um jeito, em cada terreiro e em cada casa é de um jeito, cada história e personagem tem múltiplas versões e não tem problema algum, pelo contrário. Como sabemos, na Bahia é São Jorge, no Rio é São Sebastião - e tá tudo certo. Estão todos aprendendo e se transformando.

Religião tem algumas funções. É uma forma das pessoas se conectarem com seus ancestrais e suas tradições. É uma forma de socialização e construção de redes de apoio e pertencimento. É uma forma de dar algum direcionamento ético coletivo. E é uma forma das pessoas procurarem respostas para a pergunta básica “porque estamos aqui?” e de entenderem seus papéis na ordem maior do Universo (algo que, como dizia Stephen Hawking no livro, também procuramos através da ciência- e vamos ao longo do tempo tentando compatibilizar uma coisa com a outra, lidando com nossas limitações de compreensão sobre coisas muito fora de nosso alcance). Todas geram suas formas de arte e cultura, às vezes muito bonitas.

Cada um, cada um.

(Já me ocorreu que ter religião pode ter sido uma característica de grupos de humanos ancestrais que tenha influenciado na seleção natural, como vantagem evolutiva.)

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